quarta-feira, 8 de abril de 2015

A mãe da queixa é a mãe da fantasia


 

A mãe da queixa é a mãe da fantasia

 

Daniele Baggio[1]

            Este trabalho surge a partir de questionamentos da clínica acerca do tema da "Devastação" e que se fez produto de um Cartel. 

            Em 1972, Lacan apud Miranda 2011, p. 137, utiliza o termo ravage (devastação) para exemplificar a relação de uma mulher com sua mãe. Freud (1931) em sua conferência sobre a sexualidade feminina menciona essa tal relação como desastrosa, como uma catástrofe, na qual o autor descreve as reivindicações e exigências que uma filha endereça a sua mãe, culpando-a ou responsabilizando-a por todas as suas próprias faltas.

            Conforme Colette Soler, 2005, p. 88, desde as práticas antigas as funções de maternação é substituível, porém atualmente há uma vinculação maior da mãe ao filho tornando-se o parceiro exclusivo da criança, e os homens, que sucedem "companheiros da mãe" são apenas acréscimos. Mas quais seriam as conseqüências subjetivas disso? A psicanálise também faz parte desta mudança de situação na civilização.

            Desde Freud sabemos que ele já havia apontado para a ambigüidade erótica dos cuidados maternos, da qual o sujeito a espera deverá emergir como efeito da fala, esse é o passo que o autista nunca dá e para qualquer outra criança é senão o primeiro passo da separação.  Todavia muito dependerá do lugar que o inconsciente materno reserve para este objeto surgido no Real, se é que lhe é reservado algum, pois há apenas "poedeiras[2]" de objetos a abandonar, e por não ser um substituto fálico o filho não passa de um pedaço de carne.

            Soler, 2005, p. 94, relata que a solução materna para a falta fálica, na maioria dos casos, é a maneira como o filho é situado nela, e que marca o destino da criança. Vejamos:

              A lalingua tem efeitos de inconsciente, por que não é apenas o idioma de sua região, mas antes, a língua privada do par originário, a língua privada do par originário, a língua do Eros do corpo-a-corpo cujas palavras deixam marcas pelo gozo que encerram. (SOLER, 2005, p. 97)

 

            Neste sentido, é necessário fazer uma breve explanação sobre o gozo no feminino, e o que seria a devastação a partir disto.

            Para Lacan apud Maria Anita Carneiro Ribeiro há três formas de Gozo, o Gozo do sentido situado entre o Imaginário e o Simbólico que tem haver com a fala, o querer saber mais, querer saber o final da história por exemplo. O Gozo do sintoma (fálico) situado entre o Real e o Simbólico, o Gozo Outro, situado entre o Real e o Imaginário.

            A devastação por sua vez, seria o que vimos acima, o que ocorre com Gozo Outro (que escapa a norma fálica) que se presentifica na relação mãe-filha. Isto é, por estar fora da referência fálica, há uma falta de limite, que passa muitas vezes pela crueldade, ou seja o Gozo, se arma dos lados, a mãe devasta a filha, e a filha devasta a mãe.

            Lembrando que Lacan apud Rocha Miranda 2011, p. 267 no seminário 14: a lógica do fantasia formula o que ele chama de um novo princípio - "Só há gozo do corpo" ou seja, um corpo é feito para gozar dele mesmo, mas o gozo é subjetivamente excluído, isto é, o sujeito sendo o golpe que separa o corpo do gozo. O gozo é uma falha externa ao ser, no entanto isto não impediu Lacan  de falar do gozo Outro como o que está no alvo da fantasia do neurótico, pois a neurose faz consistir o Outro.

            Neste viés, o sujeito neurótico faz o Outro consistir com suas demandas e, quando isso falha e se depara com a inconsistência do Outro, cai em um Gozo Outro que o avassala, pois na medida em que não há o que dizer toda a verdade, não há como dizer o Gozo. O corpo é radicalmente Outro. Nas palavras de Rocha Miranda:

O corpo marcado e esculpido pelo significante falo é o corpo deserto de gozo cujo objeto está fora do corpo e se faz presente na fantasia. (ROCHA MIRANDA, 2011, p. 268).

             Fantasma ou fantasia, este termo, segundo Roudinesco (1998), foi usado por Freud no início para se referir fantasia/imaginação e depois como um conceito para designar a vida imaginária do sujeito e a maneira como este representa para si mesmo sua história ou a história de suas origens. Lacan retoma este conceito freudiano e sublima sua função defensiva, como um modo de defesa contra o surgimento de um episódio traumático. Lacan postula a fantasia fundamental, cuja “travessia” pelo paciente assinala a eficácia da análise, materializada num remanejamento das defesas e numa modificação de sua relação com o gozo. O matema utilizado denomina lógica da fantasia. Trata-se de explicar a sujeição originária do sujeito ao outro, entre o sujeito do inconsciente, sujeito barrado, dividido pelo significante que o constitui, e o objeto (pequeno) a, objeto inapreensível do desejo, que remete a uma falta, a um vazio do lado do outro.
            O Gozo Outro que diz respeito a mulher está no Outro do corpo, mas não em outro corpo, e sim nela mesma. O gozo Outro feminino é vivido no corpo, mas conectado ao que jamais significado, conectado ao verdadeiro furo da estrutura.

            Conforme Soler, 2005, p. 97. cabe ao sujeito assumir ou rejeitar o desejo dela (mãe) uma vocação, sob uma marca de exclusão, sendo o que lhe resta da liberdade, dizer um Não, quem sabe?

 

           

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 87.

RIBEIRO, Maria Anita. Reunião de Cartel via Skype. Informação Verbal, em 06.07.2014.

ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MIRANDA, Elisabeth da Rocha. Tese de Dissertação de Doutorado UERJ: O Gozo no Feminino. Rio de Janeiro.  2001, 358p.

FREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina. (1931/1972 ) -v.XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1972.

 



[1] Daniele Baggio, psicanalista Membro da EPFCL, Ms. em Psicanalise pela U.K, Professora e Supervisora Academica Cesmac, danielebaggio@yahoo.com.br
[2] poedeiras: diz-se da galinha que já põe ovos ou que põe muitos ovos. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/poedeiras. Acesso em: 29.09.2014.