sexta-feira, 6 de abril de 2018

O Real e o Corpo

O REAL E O CORPO
Daniele Baggio[1]
 



O Real e o Corpo: A Clínica Psicanalítica diante dos enigmas do corpo é o título deste trabalho. Inspirado, sobretudo no livro de Luis Izcovich: El cuerpo e sus enigmas, 2010. Sob a perspectiva da metapsicologia do corpo, tendo como objetivo investigar a incidência do inconsciente “Real”[2] sobre o corpo, tomando como exemplo alguns fenômenos psicossomáticos. A psicanálise, portanto se ocupa não de outra coisa senão dos enigmas do corpo. O objetivo desde estudo é compreender a incidência da linguagem sobre o corpo, como um enigma, como um texto para ler, compreender e interpretar como um conjunto de interrogantes.

1.     INTRODUÇÃO

O artigo em questão surge do propósito de dar continuidade - enquanto desdobramento e avanço - da pesquisa De Novo:  o conceito de Com/ pulsão a repetição e suas implicações na clínica psicanalítica  (Baggio, 2014). As conclusões de tal estudo - construído como Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise –U.K (Universidade Kennedy) apresentam-se para a ideia aqui proposta como um conjunto de premissas que prepararam e ensejam a discussão em torno da possibilidade de uma ação clínica, dentro de uma perspectiva psicanalítica de Freud a Lacan. Em suma, a perspectiva de um trabalho frente a esse contexto complexo do corpo como um enigma configura-se como nosso objeto de investigação.
Na ocasião, investigamos o conceito de pulsão na Obra de Freud e Lacan, com o intuito de esclarecer questionamentos surgidos a partir da clínica sobre a compulsão a repetição, visando investigar sobre a intervenção do analista diante do circuito pulsional, se o sujeito com o processo analítico poderia obter outra satisfação que não fosse a repetição ligada ou fixada ao trauma.   
O desenvolvimento da pesquisa levou-nos a bordejar algumas questões instigantes a serem pesquisadas acerca da analisibilidade do sujeito tomado pela singular condição de corpo imposta pelo inconsciente. Em termos gerais, objetivamos compreender a expressão do inconsciente estruturado como linguagem e sua relação como inscrição no corpo. Uma vez que o ser sexuado é o gozo de um corpo e já que Lacan articulou que o objeto a como complemento do sujeito e esse complemento se localiza no Outro, no corpo do outro, o sujeito não tem outro remédio que passar pelo circuito pulsional.
Isto designa o sujeito a partir da cadeia significante e de sua estrutura, o modo em que a cadeia inconsciente exerce seus efeitos. O que significa dizer que o modo em que o ser-humano quando vem ao mundo, é uma pura substância biológica será modificada pelo outro operando a passagem do organismo ao corpo pela linguagem.
Conforme o artigo: Lalangue, via régia para captura do Real de Genesini[3] Lacan ora apresenta a palavra alingua ora lalingua, para associar a lala~cão do bebë e que relaciona isto a mediação materna cito:
“Desde a origem há uma relação com lalangue, que merece ser chamada, com toda razão, de matema, porque é pela mãe que a criança se assim posso dizer a recebe. Ela não aprende lalangue.[4]
Dizer isto significa que lalangue não pode ser equiparada a algum tipo de significação, uma vez que lalangue só se sustenta no mal entendido, em outras palavras: mesmo que a mãe tente traduzir a lalação do bebë de acordo com sua interpretação sempre haverá um lapso, uma falta, entre o que se quer dizer e o que se ouve por exemplo.
Uma vez que a clínica psicanalítica nos convoca a tratar destes enigmas, como seria a intervenção de um psicanalista diante destas questões acerca do REAL.

2.      JUSTIFICATIVA

Assim como Freud, Lacan também se ocupa do corpo, por que o corpo em psicanálise é uma pergunta dirigida ao Outro.
Se a histeria exemplifica o sintoma no corpo, Lacan a chama com um neologismo “Symptraumatise” em francês, este neologismo põe em manifesto a conexão estreita entre sintoma e trauma, a partir do qual se pode dizer que a constituição do sintoma fundamental do sujeito, ligado a neurose infantil, tem como ponto de inserção um trauma. E para Freud o trauma é sempre sexual. Mas não se trata aqui do sexual, corpo a corpo, mas que sintoma e trauma se enodam na medida em que o inconsciente fabrica uma resposta as experiências enigmáticas de gozo no corpo.
Porém o ponto crucial é que a conjunção entre gozo do corpo enigma é fundadora do inconsciente, o inconsciente se constitui quando o sujeito assume o enigma do desejo do Outro, e isto está ligado a uma experiência infantil do corpo.
Conforme Izcovich, 2010, p. 15. Se referindo a Lacan, há duas condições para designar a causa traumática: o gozo inassimilável e a constituição de um enigma, e são estas as duas condições que constituem o caráter solidário do trauma e do fantasma. O enigma em relação com o gozo é a base do fantasma, já que trauma e fantasma são equivalentes. 
Os enigmas do corpo se situam entre dois polos, aqueles que estão relacionados com o silêncio do corpo e aqueles que se encontram ligados a uma exaltação do gozo pelo Outro. Todavia as manifestações do corpo adquire um estatuto de enigma e quando se formula um enigma adquire um caráter de sintoma, que pode ser transitório ou estável.
A psicanálise não se limita a decifrar o inconsciente introduzido ao sujeito em outra dignidade em quanto a seu corpo, nem tampouco pretende tratar as formas atuais de violência e o modo como os corpos são tratados com um desfecho, a experiência analítica nos mostra que mudando a relação do sujeito, concomitantemente se muda também a relação do sujeito com o gozo do Outro.
Porém a justificativa para este esta pesquisa é compreender e aprofundar a evidência em que o trauma se constitui em sintoma pelo efeito do significante que determina a marca do gozo sobre o corpo o que equivale dizer que o significante é meio de Gozo.
Mas não apenas na evidência do trauma que marca o corpo enquanto gozo, todavia elaborar a questões que fazem borda ao inconsciente em si. Tomando como base a citação de Freud enquanto que todo o reprimido é inconsciente porém nem todo inconsciente é reprimido[5], ou seja, haveria dito de outro modo um Inconsciente Real, ou ainda um terceiro inconsciente no sentido de que nem tudo é possível de inscrição, de representação, há sempre um osso, um rochedo, um umbigo intransponível e de inacessível significação, pelas próprias falhas da linguagem. Haveria sempre algo que “não cessa de não se inscrever”[6].  
3.      REVISÃO DA LITERATURA
O corpo e a pulsão
A pulsão não é instinto, instinto corresponde a um programa animal, que marca o corpo geneticamente e determina uma conduta, o conceito de pulsão se distingue fundamentalmente disto já que não é a marca da espécie mas a marca da linguagem. Observando que em sua época se considerou a psicanálise como uma prática escandalosa, não tanto pela descoberta do inconsciente mas pelo postulado na sexualidade infantil. Referir-se a sexualidade infantil, implica em introduzir o corpo, isto exige que delimitemos bem o que se entende por pulsão. Lacan retoma o tema da pulsão a partir do seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” em um momento crucial em que começa a ocupar se do conceito de pulsão em psicanálise e que introduz uma perspectiva se dando conta dos termos “montagem pulsional”.
A pulsão para Lacan, é um efeito da demanda do Outro, a experiência é clara neste sentido, a passagem da infância, entre bebê e suas necessidades e a demanda que é dirigida ao Outro, está modelada pelo modo em que o Outro o fala. A demanda do Outro encarnada pela mãe, modela as demandas do bebê, porque parte dirige a ela e logo em seguida aos outros. O plano de necessidade do ser - humano é a necessidade que é da ordem do fisiológico, condição da vida de um organismo. A demanda é a marca de um desejo. Há então entre necessidade e demanda uma hiância: lugar que se infiltra o desejo. O desejo se constitui um pouco antes da demanda. E isso implica duas dimensões: por um lado, que o desejo da criança se constitui a partir do desejo materno que marca a necessidade da criança que introduz significantes. Pelo outro, que a criança se apropria os significantes do Outro, o que tem conseqüências sobre a necessidade que se converte em demanda. A demanda é a marca de um desejo, marca que se inscreve no corpo, a marca que esse Outro marco o corpo da criança com seus cuidados. Por isso, não existe progressão natural, não se passa da pulsão oral, a uma pulsão anal e logo a ordem fálica por simples maturação. Não se trata de uma programação cronológica. esta inscrição no corpo aparece em definida em Freud como zonas erógenas.
Este termo em Freud de zonas erógenas vão neste sentido. O corpo está libidinizado, erotizado de um modo uniforme. Pelo contrário, certas zonas erógenas são prevalentes, diferem de um sujeito a outro e para um mesmo sujeito ditas zonas não são intercambiáveis, muito pelo contrário, há uma fixação em zonas erógenas ao ponto de constituir uma satisfação do corpo e são bases determinantes da fixação de um sintoma.
Isto é o que constitui o traço perverso de todo sujeito. Há uma dimensão de perversão generalizada que está determinada por esta estrutura de inscrição de significante no corpo. A exigência é satisfazer o que a zona erógena reclama. A fixação da zona erógena comemora a inscrição do significante no corpo que determina um modo específico de satisfação.
Este é o esquema que Freud traçou para pulsão e que tem conseqüências decisivas para a orientação da psicanálise. E como se trata das pulsões e não da pulsão definitiva, Lacan escreve a pulsão a partir da relação de um sujeito marcado pelo significante em conexão com a demanda do Outro para alcançar a satisfação. Mas precisamente, se existe uma zona do corpo prevalente ligada a essa demanda do Outro, dita zona do corpo tem afinidade com uma borda, borda do corpo.

O corpo: R,S,I

Conforme Izcovich, 2010, a primeira concepçõ de Lacan acerca do corpo corresponde ao “Estádio do Espelho” uma vez que se ocupa de artiular sobre prematuridade da concepção do Eu que vem através do Outro, através da imagem, em outras palavras, diante do espelho o sujeito se depara com o Eu a medida que reconhece o Outro, ou ainda, a identidade humana está dada ao menos no início da vida pelos limites da imagem (identidade imagnária). Porém depois de 1953, Lacan escreve sobre este corpo sutil, que não se trata de um corpo puramente imaginário. Mas um corpo que passa  do imaginário ao simbólico para constituir um conceito de sujeito, ou seja, a ideia de Lacan é que o sujeito é um efeito do significante que extrai do Outro. O simbólico por sua vez exerce seus efeitos sobre o imaginário. Porém é necessário lembrar que a linguagem não sustenta uma garantia absoluta acerca da tradução ou da significação que se propõe, há sempre uma falta. Isto é, embora Lacan já tenha nos provocado com Lalangue já sabemos que por mais aproximação que exista entre a expressão da criança e a mãe, há sempre um falha.
Um outro ponto importante é pensar que para Lacan, a função paterna estabelece uma função de castração, barreira a este Outro e que isto é fundamental na estruturação psíquica, uma vez que a função paterna introduz a dimensão de um direito ao gozo e paradoxalmente o significante introduz uma causa de gozo. A castração em Lacan não é obstáculo, é impossibilidade de gozo que abre uma via do desejo possível. Acreditar na ideia que o saber inconsciente afeta o corpo, é sustentar a ideia de que o sujeito é efeito do significante mas o inconsciente promove um efeito no corpo. Lacan usa uma fórmula em “posição do inconsciente”: o trauma é a inscrição de um significante que comemora o instante do gozo. Nesse sentido, há uma dimensão em que a inscrição do significante produz um efeito de memória que condiciona a repetição. Existe no significante do trauma um saber sobre o gozo a repetir. Há então um laço íntimo entre o sintoma, como modalidade de gozo e o trauma como um gozo irruptivo. O sintoma inclui o trauma.

FPS em Psicanálise

Apesar de Freud, não ter falado diretamente do FPS “fenômeno psicossomático” é em sua revisão literária que encontramos vários aportes para desenvolver tais questões. Arranz, 2009 nos orienta neste percurso já que teceu uma publicação ddicada a fazer esta didática revisão em Freud. Segundo a autora o FPS pode ser pensado em Freud fazendo uma relação direta a teoria do Eu, da Pulsão e do Narcisismo. Uma vez que localizaria o FPS ao auto-erotismo como uma lesão de destruição do órgão sobre a necessidade. Dito de outro modo, poderíamos pensar que o FPS estaria remetendo a uma época do infantil que o sujeito encontra seu prazer na relação com o próprio corpo. Quando Freud escreve o texto de 1915 sobre a pulsão e seus destinos, descreve alguns destinos comuns para as pulsões do sujeito, seriam elas: o retorno sobre a própria pessoa “masoquismo”, para o Outro “Sadismo”, o Recalque e a Sublimação. Deste modo podemos compreender o FPS conforme um destino de masoquismo, em que o sujeito encontra em seu próprio corpo seu  gozo.
Mais adiante no texto de 1920 “ Mais Além do Princípio do Prazer”, a autora compreende que o FPS estaria fusionada (lesão) com a pulsão de morte e a tentativa de (inscrição) com a pulsão de vida, de modo que o FPS estaria “fora” do recalcado e sua fixação seria como um signo. Relembrando de algumas pontuações de Freud neste texto, sabemos que ele escreve o Mais Além do Princípio do Prazer para dar conta de alguns aspectos clínicos tais como a repetição em que o que ele havia escrito anteriormente não havia sido suficientes, refiro-eme a máxima de que uma psicanálise seria passar o conteúdo inconsciente para a consciência e assim obteveríamos um efeito, neste texto Freud mostra com o exemplo de alguns pacientes através da repetição que existe algo a mais, ou seja, a satisfação da pulsão de morte estaria neste Mais Além. Portanto, pensar clinicamente em alguns casos em que a pulsão de morte deixa suas marcas, nos é sempre um desafio. [7]


4.     CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que surge então como questão é que haja  u dispositivo que toque o Real ao Real. O analista podendo intervir não só apontando o recalcado mas ao ponto de modificar o modo de satisfação de um sujeito com seu inconsciente. Para que obtenha um novo modo de satisfação, uma nova identidade, que não seja mais um sintoma auto-erótico
Mais ainda uma psicanálise se ocupa de tratar o Real pelo simbólico, de modo que aquilo que não cessa de se increver, se escreva ainda que não a plenitude, mas que estes alcances possíveis retratam um efeito no sujeito, no corpo, na angústia e no modo de se relacionar com seu o Gozo.
Conforme, Mucida 2012 é a insistência do Real que permitiu a invenção do dispositivo analítico e obriga os analistas a revisitarem sua prática e os conceitos com os quais operam. E neste caso operar com a interpretação tendo em vista o Real fora de sentido, promovendo um saber fazer com o Real que parasita o gozo, com efeitos sobre a satisfação, ajudando o ser falante a se desembaraçar no mundo, ainda que não seja um mundo de representação.


5.     REFERÊNCIAS

ARRANZ,Z.L. La perspectiva freudiana Del fenômeno psicossomático. Buenos Aires: Letra viva, 2009. 174p.
BAGGIO.D. De Novo: O conceito de Com/Pulsão a Repetição e suas implicações na clínica psicanalítica. Campo Grande; Life, 2014.
GENESINI T. GÓIS E; UYENO E; UENO M. Lalangue: via régia para captura do Real. Disponível em: http://psicanaliselacaniana.com/estudos/documents/LALANGUE.pdf. Acesso em: 06/04/2018.
IZCOVICH, L. El cuerpo y SUS enigmas. Medelin: UPB, 2009.107 p.
LACAN, JACQUES.  Os Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.
MUCIDA, A. Espaço da interpretação e inconsciente Real. Revista Stylus: A Lógica da Interpretação. Nov. 2012.n.25.



[1] Psicanalista, membro da EPFCL, Ms. em Psicanálise pela U.K, Psicóloga.
[2] Inconsciente Real: tese trabalhada por Lacan para designar o que está fora de sentido.  
[3] Disponível em: psicanaliselacaniana.com/estudos/documents/LALANGUE.pdf
[4] Jacques Lacan: Conference ET entetiens dans dês universutés nord-americaines. Scilicet n. 6;7, 1975, p. 42-45. Apud Genesini.
[5] FREUD. S. El yo y El ello. En Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2000, t. XVIII, pág. 25. Apud    ARRANZ, 2009.
[6] LACAN, J. Escritos, 1962.
[7] Vale lembrar que o auto-erotismo acontece posteriormente a a relação do sujeito com o Outro. Isto é, justamente porque o sujeito já experienciou algo com o Outro que pode “aprender” sobre o auto-erotismo.