REPENSANDO A CLÍNICA:
(ATR)AVESSANDO OS LIMITES DE UMA FORMAÇÃO TRADICIONAL EM PSICOLOGIA
Daniele
Baggio Silva de Menezes[1]
A idéia deste trabalho surge a partir de um
questionamento acerca da prática enquanto formação em psicologia. Vislumbrando
através de reflexões pessoais e em equipe a "atualização" deste
cenário, traçando um referencial histórico que contextualiza a visão da clínica
médica "tradicional" até os dias atuais e seus desafios.
Antes de iniciar é válido lembrar
que só con(sigo) pensar nesta perspectiva fazendo uma reflexão pessoal sobre
minha tão solitária[2]
e singular trajetória neste percurso. E embebecida da fonte psicanalítica tão
próxima a mim e ao que acredito é que rascunho o re-pensar este "atr(avessamento)".
Como
a teoria de Freud e Lacan me guia e me sustenta pela ótica que vejo o mundo,
inicio desde então, mas também com a ajuda de Foucault no Nascimento da Clínica
para todavia paradoxalmente atravessarmos o desafio atual e futuro, fazendo
psicanaliticamente o caminho inverso, re-verso, avesso, ou seja, de trás para
frente.
Vejamos Foucault, 1963/2011, o
início da clínica médica despontou no final do século XVIII e início do século
XIX com as inúmeras descobertas e instrumentalização médica advinda de
observações e estudos que muito contribuíram para os diagnósticos.
Porém vale lembrar que a clínica surgiu com Hipócrates e este período seria o
de crescimento e auge da medicina. O início da clínica médica se faz pela
observação e entrevista e esses procedimentos influenciaram o saber psi.
Em
outras palavras o significado do termo clínica segundo Doron & Parot
(1998), “(...) originariamente, a atividade clínica (do
grego klinê – leito) é a do
médico que, à cabeceira do doente, examina as manifestações da doença para
fazer um diagnóstico, um prognóstico e prescrever um tratamento” (Doron
e Parot,1998, pp.144-145).
Para
a medicina é impossível diagnosticar sem antes saber os antecedentes da doença.
Ao menos era assim antigamente. Neste ponto de an(coragem) que nos detemos,
para clarear as idéias repensadas neste esboço. Ora o que ocorre na atualidade
clínica psi que nos limita então, seria o espaço físico? O tradicional dito
pelo social seria isto?
Conforme
o dicionário da língua portuguesa o termo tradional significa "algo
relativo a tradição ou conservado por ela ou ainda transmissão oral de lendas,
fatos, costumes, etc, tudo o que se sabe por uma transmissão de geração em
geração, passando de boca em boca." (Melhoramentos, dicionário da língua
portuguesa, 2006, p. 514)
Fazendo
referëncia ao artigo o surgimento da clínica (2007) o Conselho Federal de
Psicologia, em uma de suas pesquisas, apresentou um dado significativo sobre a
atuação do psicólogo no Brasil. Entre os psicólogos (75%) que estavam exercendo
a profissão na data da pesquisa, a maioria (54,9%) se dedicava à clínica em
consultório, e 12,6% atuava com Psicologia da saúde, sendo que, nesse campo, a
prática, na maioria das vezes, também é clínica. Mas, anterior à discussão
sobre a atuação do psicólogo, no Brasil, uma questão nos parece prioritária: o
que é Psicologia clínica?
Dutra
(2004) revela que alguns conceitos são pertinentes à prática clínica,
como escuta clínica, sofrimento psíquico, subjetividade.
Neste
viés podemos pensar que atravessar os limites do tradicional seria avançar? já
sabemos que a chamada clínica amplicada por assim dizer esta cada vez
acontecendo nos diversos cenários, uma vez que a compreendemos como uma postura ética e política diante do
sujeito humano. Não um local.
Todavia
a proposta deste trabalho é instigar
reflexões acerca disto, mas também pensar sob uma outra perspectiva a de que
estes limites talvez não sejam as barreiras do espaço físico, mas sim os
impedimentos próprios, psíquicos, limitados a pensar a psicologia clínica
apenas desta ou daquela maneira (tradicional, amplicada). Antiga - moderna.
Ensimesmar-se a refletir,
falar, elaborar, escrever, transmitir de dentro para fora uma posição,
uma saída, uma alternativa para atravessar estes limites é também uma
possibilidade de atravessamento obtida através da clínica. Digo, do próprio
processo psicoterápico, psicanalítico...
Uma vez que tantos pré-conceitos que
temos a depor, de nossa miséria humana.
Se faz possível pela clínica a nossa, dos psi(s) sobretudo. Os pré-conceitos a atravessarmos iniciam por
nós mesmos, pela própria profissão, que
é diversa, E o que diverge desde sempre
causa angústia, inquietação, frustração, críticas.
Freud em seu texto "O
Estranho" nos ensina que: “o
estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar” (Freud, 1919 p. 300). Isto é, reprimir,
projetar o estranho que habita em nós é a principal via que devemos refletir.
Pois são nestes disCURSOS que habitamos e somos chamados a transmissão. A
clínica é e sempre será um desafio. Mas não um desafio externo, comum, um
desafio particular. De atravessamento dos próprios limites e pré-conceitos.
Na minha pequenês singularidade
proponho dizer que: Não há outro
re-pensar da clínica senão o próprio. No sentido de um apropriamento de
intrínsecas questões internas que se limitam, sem mesmo que o sujeito se
deflagre com isso. Os limites e impedimentos que quiçá a psicologia precisa
atravessar são nada menos que os do próprio umbigo. E isso não se constrói pelo
externo, pela prática articulada sem reflexão, sem a tradição da escuta do
sofrimento das mazelas humanas, pela via das histórias, dos antecedentes
familiares que desconhecemos em nós mesmos. Não se trata do Outro, se trata de
cada um de nós, primeiro.
Fazer uma clínica diferente,
diversa, aberta só é possível por ela mesma, seu objeto ético prático para
adiante conseguirmos este atravessamento enquanto campo.
Parece óbvio o que estou dizendo,
escrevendo, pensando, insistindo. Mas o óbvio não tem sido feito e talvez os
limites estejam aparecendo cada vez mais. No externo, no social, como todo
sintoma.
Retorno a Freud em Recordar, Repetir e
Elaborar (1914) quando aborda que o principal instrumento para cessar a
repetição é transformá-la num motivo para recordar. Ou correremos o risco da
repetição do mesmo, do "atual" que é antigo.
Para terminar hoje este trabalho,
sabido que seu desafio é ainda de muito avançar detenho -me a arte e a poesia
que desde sempre nos antecipam, escolho
Manoel de Barros, meu conterrâneo, de raíz, de familiar em seu livro sobre nada
(1996).
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da
sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a
poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o
contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma
fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é
o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de
imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas
quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são
inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a
seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a
ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes
de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não
é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro
perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para
ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
(Manoel de Barros, 1996).
REFERÊNCIAS:
BARROS,Manoel.
Livro sobre nada. Rio de Janeiro, Ed.
Record, 1996.
DORON, R.; PAROT, F.
(orgs.) Psicologia Clínica. Dicionário de Psicologia.Vol. I. São Paulo: Ática,
1998, pp. 144-145.
DUTRA,
E. Considerações sobre as significações da Psicologia clínica na
contemporaneidade. Estudos em Psicologia, v. 9, n. 2, pp. 381-387,
2004.
FOUCAULT,
Michel. O nascimento da
clínica. 2. ed. Rio de Janeiro: Artmed, 1963/2011.
FREUD,
Sigmund. O caso de Schreber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos.
(1911/1913). 1ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
FREUD,Sigmund. “O
Estranho” (1919) Vol.17, Rio de Janeiro: Imago, 1969, 297-324.
MELHORAMENTOS
dicionário: língua portuguesa. São
Paulo: Ed. Melhoramentos, 2006, p. 514.
OLIVEIRA,
Jacqueline, ROMAGNOLI, Roberta e OLIVEIRA, Edwiges. O Surgimento da Clínica Psicológica: Da Prática Curativa aos
Dispositivos de Promoção da Saúde. Revista Psicologia, Ciência e
Profissão, 2007, p. 608-621.
ROUDINESCO,
Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de
Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[1] Mestre em Psicanálise, Psicóloga, Psicanalista Membro da
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Professora e Supervisora
Acadêmica -CESMAC (danielebaggio@yahoo.com.br)
[2] Lacan, 1964 utiliza esta expressão "tão sozinho quanto sempre
estive" para referir-se a singularidade da experiência de um sujeito em se
fazer ATO.