domingo, 20 de outubro de 2019

A PELE/o ao Outro?



Daniele Baggio[1]

           
O questionamento que propicia o aprofundamento deste estudo, é acerca da incidência do sintoma no corpo como um enigma tão presente na clínica psicanalítica. Traçar uma compreensão sobre a inscrição do significante no corpo passando pela pulsão enquanto efeito de linguagem e a formação dos sintomas.
Izcovich, 2009, p. 107 descreve que o desejo humano se constituiu a partir do desejo materno, que marca a necessidade do bebê ao introduzir significantes. Por outro lado o bebê se apropria dos significantes do Outro (necessidade que se converte em demanda). Marca que se inscreve no corpo, dos cuidados do Outro.
Essa inscrição no corpo aparece definida como zonas erógenas. O corpo é libidinizado pelo Outro de modo uniforme, porém certas zonas são prevalecentes, diferem de um sujeito a outro.
Há uma fixação nas zonas erógenas ao ponto de constituir uma condição na satisfação do corpo que são as bases determinantes na fixação de um sintoma. (p.55).
Vejamos Freud p. 477 (1916/1917) Conferências Introdutórias a Psicanálise:

...a libido é como que barrada e precisa fugir para algum lugar onde possa dar vazão a energia investida, conforme a exigência do princípio do prazer. Tem de subtrair-se do Eu. Tal escapatória lhe é permitida pelas fixações no caminho de seu desenvolvimento que agora ela segue regressivamente, fluxo inverso investindo essas posições reprimidas. ...enquanto a satisfação lhe acenava era dócil mais sob a dupla pressão das frustrações exterior e interior ela se torna rebelde e se lembra de tempos passados e melhores.
A fixação de um sintoma é o que constituiu o traço perverso polimorfo de todo o sujeito, a exigência de satisfazer o que a zona erógena reclama. O que determina de modo específico a satisfação e a inscrição do significante no corpo. O que faz Lacan dizer (citado por Izcovich 2009, p. 55) que o aparelho de gozo[2] é sempre feliz.
O ponto que faz um sujeito recorrer a analise não é por falta de satisfação mas porque a satisfação que este sujeito busca não é esta, é outra.
Os sintomas e referimo-nos aqui, naturalmente, aos sintomas psíquicos, são atos prejudiciais à vida como um todo, ou pelo menos inúteis, dos quais frequentemente a pessoa se queixa como algo indesejado e que traz sofrimento ou desprazer. O principal dano que causam é o custo psíquico que envolvem além daquele necessário para combate-lo...esses dois custos podem resultar num extraordinário empobrecimento de energia psíquica disponível e assim, numa paralização do enfermo no tocante as tarefas importantes de sua vida”.  (FREUD, 1916-17 p. 476).
            De forma resumida para Freud e Lacan o estado da pulsão é sempre parcial. Lacan citado por Izcovich, 2009, p.55, define a pulsão a partir da relação de um sujeito marcado pelo significante em conexão com a demanda do Outro. O sujeito passa pelo “aperto” dos significantes do Outro para “ter” a satisfação. Existe uma zona do corpo ligada a demanda do Outro (borda do corpo). A montagem da pulsão é um dispositivo de linguagem que o sujeito fabrica inconscientemente para ter acesso a pulsão, simbólico e real estão remontados. “Débora” tem uma espécie de coceira na pele pelo corpo todo formando-se manchas avermelhadas, o corpo coçante é automático, basta falar sobre o “assunto” e o sintoma reclama as exigências do Outro, um a-pelo na pele de um corpo que faz suplência.  Nas palavras de Débora: Tem que A-PELar, né?
            Lacan (1976) citado por IZCOVICH, 2009 ao falar sobre a separação com Outro propiciada pela análise diz que a marca inscrita no corpo é a assinatura que diz: este sou eu, e desta forma podemos então pensar freudianamente que alguns sintomas são bastante exitosos no que tange a uma linguagem cifrada que demanda tradução, interpretação, compreensão de ditos inauditos que se enigmatizam em função de uma demanda tão cara e essencial ao sujeito.
            Com Freud aprendemos que a causação da neurose se dá pela predisposição mediante a fixação da libido + vivências traumáticas acidentais (FREUD, 1916-17, p. 480). 
              Assim como Freud, Lacan também se ocupa do corpo, por que o corpo em psicanálise é uma pergunta dirigida ao Outro.
Se a histeria exemplifica o sintoma no corpo, Lacan a chama com um neologismo “Symptraumatise” em francês, este neologismo põe em manifesto a conexão estreita entre sintoma e trauma, a partir do qual se pode dizer que a constituição do sintoma fundamental do sujeito, ligado a neurose infantil, tem como ponto de inserção um trauma. E para Freud o trauma é sempre sexual. Mas não se trata aqui do sexual, corpo a corpo, mas que sintoma e trauma se enodam na medida em que o inconsciente fabrica uma resposta as experiências enigmáticas de gozo no corpo.
Porém o ponto crucial é que a conjunção entre gozo do corpo enigma é fundadora do inconsciente, o inconsciente se constitui quando o sujeito assume o enigma do desejo do Outro, e isto está ligado a uma experiência infantil do corpo.
Os enigmas do corpo se situam entre dois polos, aqueles que estão relacionados com o silêncio do corpo e aqueles que se encontram ligados a uma exaltação do gozo pelo Outro. Todavia as manifestações do corpo adquire um estatuto de enigma e quando se formula um enigma adquire um caráter de sintoma, que pode ser transitório ou estável.
A psicanálise não se limita a decifrar o inconsciente introduzido ao sujeito em outra dignidade em quanto a seu corpo, nem tampouco pretende tratar as formas atuais de violência e o modo como os corpos são tratados com um desfecho, a experiência analítica nos mostra que mudando a relação do sujeito, concomitantemente se muda também a relação do sujeito com o gozo do Outro.



REFERÊNCIAS:

FREUD, S.     OBRAS COMPLETAS, VOL. 13. CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS Á PSICANÁLISE. SÃO PAULO: CIA DAS LETRAS, 2014, P. 475-500.
IZCOVICH, L. El cuerpo y SUS enigmas. Medelin: UPB, 2009.107 p.
LACAN, Jacques.  Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.




[1] Psicanalista, ME –EPFCL/BRASIL, FCL-AL (em formação) Ms. em Psicanálise. danielebaggio@yahoo.com.br
Trabalho apresentado no XX Encontro Nacional da EPFCL-BRASIL “A política do Corpo” em Aracajú Out/2019.
[2] O aparelho psíquico de Freud equivale a aparelho de gozo de Lacan.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Do desejo pela psicanálise ao desejo do analista

Do desejo pela psicanálise ao desejo do analista

Prelúdio 1


Em Abril de 2019 teremos no Brasil, mas especificamente em Maceio-AL a presença do ilustre psicanalista francês Luís Izcovich AME - IF/EPFCL. Que marcará um traço importante em nosso percurso pela psicanálise através do Ato Analítico. O tema em questão será “distinguir” o desejo pela Psicanálise ao desejo do analista, ponto pelo qual todo analista “deve” atravessar. Conforme nosso convidado em uma conferência
(2013) o desejo em Psicanálise tem como origem a falta ser, isto é, surge do desejo materno, desejo de “falo”, mas não se satura com a identificação do filho(a) ao falo. Já que, a humanização do desejo é enodar o desejo e a lei. Isso demonstra perfeitamente a finalidade de uma análise. A ideia de Lacan, assim como a de Freud, é que, durante um tempo, a análise possa alcançar o maior ponto de simbolização possível, de elaborar, simbolizar, isto é, quanto mais se simboliza, mais se perde o gozo. Se o (NP) humaniza o desejo, é o que permite responder a pergunta sobre o desejo do outro e, nesse sentido, o NP dá um nó ao que falta ao simbólico. A metáfora paterna tem uma função de nominação que enoda o imaginário e o simbólico. E Lacan acreditou por um tempo que isso era suficiente. E o que ele chegou a trabalhar no seminário da angústia é que “só o amor permite condescender o gozo ao desejo”. Isso implica que o amor é o que permite passar de um gozo que não tem em conta o outro a um desejo que por definição tem em conta o outro. É uma operação do amor, é uma consequência da operação paterna.
Todavia mais adiante escreve sobre o “desejo do analista” que se enlaça com a pulsão, na medida em Lacan afirma que vai articular a pregnância da função do desejo do analista a partir da pulsão, de sua desmontagem e de seu circuito; o que significa que esta pregnância provém da pulsão. “Trata-se de conceber”, diz Lacan, “onde está o ponto de disjunção e conjunção, de união e de fronteira, que só pode ser ocupado pelo desejo do analista”. Em outras palavras, trata-se de uma solidariedade estrutural entre a pulsão e o desejo do analista.
Lacan, citado por Izcovichi (2013), ainda acrescenta uma dimensão suplementaria, com a ideia de que existe um gozo que não se pode simbolizar, e aí surge uma pergunta à psicanálise: “O que não se pode simbolizar, pode se esperar que se reduza com o tempo?”. Aqui entra o valor que Lacan coloca sobre o desejo do analista. Lacan, quando introduz a definição de desejo do analista, diz que o desejo do analista não é um desejo puro, é um desejo de se obter a diferença absoluta, e não se trata de qualquer frase, se trata da frase que se conclui o seminário, e por isso há um valor importante. Lacan percebe esta frase de outra afirmação, que o desejo (em geral) de um sujeito é, em essência, instável. Não funciona com um fluxo contínuo, há uma descontinuidade, e isso faz com que o neurótico desconfie desse desejo, do desejo de estar seguro de algo que o orienta, mas que amanhã pode o abandonar.
Podemos dizer, então, que o desejo busca a satisfação fálica e o sujeito percebe que o desejo não o protege de suas errâncias. O termo errâncias, aqui, diz respeito às decisões falhas, e isso se constata em momentos cruciais da vida, em que o sujeito pode renunciar ao seu desejo, ou pode interpretá-lo mal. Tomemos o exemplo da angústia, afeto do real, como dizia Lacan, que comporta uma certeza; por suposto que é uma certeza, o problema é como um sujeito interpreta sua angústia, como interpreta sua certeza. A angústia é esse indicador de que estou na direção, ou devo mudar de direção? Esta é uma pergunta fundamental, porque a análise é um dispositivo que provoca angústia. Mas por que uma análise angustia? Em primeiro lugar, por que se encontra com o desejo do analista, e esse desejo vai ao oposto do recalque (as cenas que o sujeito tende a excluir de seu pensamento), seguindo a teoria freudiana, segundo a qual a angústia gera o recalque, que funciona como uma proteção, um escudo. Se o desejo do analista é o que tenta extrair este escudo, o que vai produzir é a angústia. Mas há outra razão pela qual o desejo do analista angustia, o principio da angústia é a impossibilidade de nomear que desejo do outro. O analista encarna/presentifica na análise esta dimensão. A teoria de Lacan sobre a angustia é que a angústia se manifesta quando o objeto a faz sua aparição. Se o analista ocupa lugar semblante do objeto a, isto quer dizer que o analista sabe que o único modo de ascender o verdadeiro desejo ao sujeito é de atravessar a angústia; há sujeitos que se angustiam mais, outros menos. O analista deve saber qual é a angústia que o sujeito deve tolerar e, nesse sentido, Lacan fala de uma questão ligada ao manejo do tempo. Manejar a angústia do analisante não é manejar o analisante. É manejar a relação que o analisante tem com o tempo. E aqui há uma observação geral que se pode fazer. O neurótico está sempre fora do tempo, o psicótico também, mas de outro modo. A análise, introduzindo a dimensão da angústia como efeito de desejo do analista, introduz o sujeito ao tempo, já que Freud trabalha o desejo como indestrutível, isso é, a marca do desejo do outro. O desejo instável pode ter flutuações, mas não desaparece jamais. O desejo do analista como um desejo puro é um desejo que não aceita nenhum limite, nenhum compromisso, o único fim é o encontro com o absoluto, não por nada. O desejo do analista não é desejo do impossível, trata-se de um ponto importante, já que implica que o analista se agarra a uma ideia em cada momento da cura sobre o que é possível e o que é impossível. Há que se ter em conta que o impossível é o nome do real, digo isto para deixar claro um ponto: o real, não é efeito do fim da análise, há um real no início da cura, o Real esta presente do lado da cura; portanto, o desejo do impossível é reconhecer o impossível, integrá-lo como limite ao desejo.
Izcovichi (2013) contribui ainda com a dimensão de que o desejo do analista é um desejo de obter a diferença absoluta, que é o nome do gozo do sujeito, o que tem como substância de um sujeito uma vez caída as identificações. Observe que numa análise, à medida que as identificações do sujeito caem, o que são os outros não cessa de agradar-se, já que as identificações vão ao lado se fazer um, um igual aos outros.
A desidentificação vai ao lado de fazer aparecer o traço distintivo, é por isso que a desidentificação produz necessariamente uma separação com o outro, produz uma diferença, até fazer emergir o que Lacan chamou mais tarde de poema do sujeito. Lacan disse, em 1976, conforme Izcovich, “eu não sou poeta, sou poema”. O poema dá a ideia de que não se trata em um sujeito só da questão do desejo do outro, senão da marca escrita no corpo ao qual uma análise vai aportar a assinatura que diga “este sou eu”. O desejo do analista, portanto, como desejo de obter a diferença absoluta, demonstra que a análise é uma experiência de leitura, mas não unicamente; a prática de leitura é a base da interpretação analítica. Para que um sujeito possa ascender ao seu nome próprio, inscrito no corpo, faz-se falta uma inscrição, esse poema que se inscreveu em sujeito faz falta um sujeito em que se agregue sua assinatura. Pode-se, pois, assinar o poema, uma vez que se ascendeu uma diferença absoluta. O desejo do analista não se sustenta pelo fantasma e não aponta para um objeto particular. É a interpretação do analista que permite sujeitar o inarticulável do desejo. Há aqui outra diferença entre qualquer desejo e o desejo do analista. O desejo se interpreta, o único desejo que não se pode interpretar é o desejo do analista, nem sequer para aqueles que estão em uma Escola de Psicanálise, ou Cartel de passe, por que o desejo do analista só se pode perceber pelos efeitos analíticos em seus analisantes.
Segundo, Quinet (2008, p. 113), Lacan, no seminário 11, nos indica que “se a transferência é o que da pulsão desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que traz ali de volta”. O desejo do analista não é um desejo triste, conformado com a falta, apesar de assumir a falta como consentimento à castração. Trata-se, antes, de um desejo que empolga, anima, vertendo afeto para o âmbito do saber que ele enquadra, conferindo-lhe a conotação de um saber alegre, gaio saber. Trata-se de um saber que é desejante.
Desta forma, entusiasmados com este Encontro, convidamos a tod(x)s os sujeitos desejantes a estarem conosco nessa transmissão primorosa tão a formação contínua do analista.


[1] NP (nome do pai ou metáfora paterna) é o termo lacaniano sob uma perspectiva que o pai exerce uma função simbólica que permite a criança adquirir uma identidade.  Segundo Roudinesco (1998, p. 541), nessa perspectiva e no âmbito da teoria lacaniana do significante, a transição edipiana da natureza para a cultura efetua-se da seguinte maneira: sendo a encarnação do significante, por chamar o filho por seu nome, o pai intervém junto a este como privador da mãe, dando origem ao ideal do eu* na criança. No caso da psicose, essa estruturação não se dá. Sendo então foracluído o significante do Nome-do-Pai, ele retorna no real* sob a forma de um delírio contra Deus, encarnação de todas as imagens malditas da paternidade.