quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Alienação: Paixões do Ser; Separação: Paixões da Alma: Não sem passar pelo corpo

 

A questão que nos causa este trabalho é tentar distinguir paixões do ser como alienação e paixões da alma como separação. Tentando elucidar a partir dos afetos sentidos no corpo e transicionados a um saber o que fazer com isto “savoir-faire”.

 As paixões do ser são paixões da relação com o Outro. Amor, ódio e indiferença: tem a ver com uma relação. Já as paixões da alma por assim dizer: tristeza, o gaio saber, a felicidade, a beatitude, o tédio e o mau humor têm a ver com uma separação, ou resumidamente dizendo: tristeza e mania, conforme Laurent citando Lacan em Televisão. Afetos de um final de análise, por assim dizer, Izcovich 2011, p. 123.

Tal operação é possível através do atravessamento da fantasia. Esta experiência de “alma” passa pelo corpo com este atravessamento. É uma direção muito profunda, no ensino de Lacan, a respeito das dificuldades que tem o sujeito com seu corpo.

Os termos que figuram em Televisão, 1973 estão postos como: A tristeza como um saber, lúcido. O gaio saber, vivente. A felicidade articulada a cadeia significante. A beatitude onde não falta nada. E o mal humor que tem um toque de Real. Tais afetos; comporta um: Não é isso. É uma solução a partir da qual se trata de construir uma harmonia possível, uma relação possível entre desejo e gozo.

Mas há ainda o entusiasmo, a alegria de pensar. A relação da cadeia significante. Que faz Lacan afirmar que, se na saída de uma psicanálise não houver entusiasmo, não há analista.

Se o sujeito é falta, a forma como sujeito se percebe como um ser sempre se constrói. (imisção com a alteridade). Por isso, Lacan demarca como única essência verdadeira do sujeito, a falta.

A separação seria então a travessia do fantasma, separando o sujeito dessas fixações, da repetição dessa posição de gozo e desse vínculo ficcional com o desejo do Outro, podendo, através dessa perda, entrar em contato com a falta como a verdadeira causa do desejo, para além de suas alienações.

 O que chama atenção é o fato do termo alienação ter também o sentido de separação, distanciamento. Explico com: Zanola, 2018 que cita Lacan Seminário 11 em que a separação implicaria em um retorno a alienação, na qual o sujeito se fixa como objeto frente ao desejo do outro. Indicando que: há uma separação derradeira, permitindo o sujeito se separar do segundo sentido apresentado da alienação, deparando-se com a falta como causa do desejo para além de sua fixação.

Entendemos que a separação se refere ao percurso que vai do sujeito como falta a ser para a articulação do desejo como desejo do Outro. Porém, o sujeito deverá renunciar ao gozo do ser (a satisfação incestuosa) que deveria ser rompida para o desenvolvimento do sujeito enquanto desejante.

 Zanolla acrescenta ainda, na busca de se fazer representar pela via do significante, característica da alienação, o sujeito entra na tentativa de resgate não só de uma representação mais sobretudo de um gozo perdido. Isso representa um esforço de reencontrar uma estabilidade a qual fica abalada uma vez que perdemos o ser.

Isso seria dizer que não há destituição subjetiva[1] sem desestabilização do sujeito? Fiquemos com a interrogação.

Dito isto, conseguimos então fazer a questão que nos causa este trabalho. As paixões do ser como sendo paixões da relação com o Outro. E as paixões da alma como fruto de um trabalho de final de análise que se dá por afetos específicos sentidos no corpo e transicionados para um amor ao saber ou de forma mais prática: um saber o que fazer com isso, que passa pela satisfação inédita, incluindo uma forma de transmissão disto?

Ainda sobre os afetos é válido dizer com Izcovich, 2011, p. 123 que a relação do sujeito com os afetos é sempre singular e marca um estilo.  Esta relação é um efeito de discurso que faz marca no inconsciente e produz um ser afetado pelo inconsciente. Depois de uma análise, dos efeitos da transferência sobre os afetos, seus efeitos são imprevisíveis e considerados caso a caso.

Conforme este mesmo autor se na entrada em análise a lógica motor da cura é o amor de transferência, efeito de um amor inconsciente, a angústia constitui sua bússula porque é indício de um sujeito concernido pelo enigma do desejo do Outro.

Uma vez que a angústia é inerente a estrutura do sujeito também é inerente a estrutura do discurso analítico, que se verifica no discurso onde o analista em posição de agente se dirige ao outro em posição de divisão, que permite um levantamento da repressão, portanto um desejo novo. Por que antes o sujeito havia vivido com a experiência de um desejo marcado pela repressão.

Ainda conforme Izcovich, p. 128 a angústia legítima é indício da eminência de um desejo legítimo, de um encontro que aponta a emergência de um desejo inédito. Isso indica um momento muito preciso entre o horror de saber e sua causa e o que isso produz. Há aí um benefício epistêmico que produz novos efeitos a respeito do que era designado como paixão da ignorância.

Há ainda outro afeto: a depressão, ou dito de outro modo quando uma análise produz efeitos sobre o desejo, comprovamos que sempre no horizonte há uma emergência de afetos negativos. O que ocasiona uma “bipolaridade” em que o sujeito oscila entre euforia e depressão.

E quanto a isto não há semblantes, há o real. Uma experiência de vazio que ordena a vida do sujeito a posteriori. Há ainda a necessidade de falarmos da vergonha como real. Lacan citado por Izcovich p. 130 aborda a vergonha como um afeto separado, ligado ao cara a cara com a morte e que a radicalidade da experiência com a vergonha permite uma dignidade com a vida. 

Morrer de vergonha é então um afeto fundamental porque é um indício de virada pelo qual o sujeito se extrai radicalmente do discurso do Outro.

Depressão real, angústia legítima, morrer de vergonha e horror de saber são afetos do real que um analista tem que fazer feito sentir seu analisante. São as condições de um efeito, de uma satisfação. Nos resta saber como? Caso por caso. Mas, sem a experiência dos afetos não há satisfação inédita. E para encerrar com o título deste trabalho, sem passar pelo corpo não há travessia.


Referências:

Dunker, Chisthian. Destituição Subjetiva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tnTid417ayU. Ed. 1996.

Freud, S. Inhibicion, sintoma y angustia. In Obras completas, Vol. XX, Buenos Aires: Amorrortu.

Hanns, Luiz Alberto. Dicionário Comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago

Izcovich, Luis. Los afectos em la experiência analítica: Medellin: UPB, 2011.

Laurent, Eric. As Paixões do Ser. Bahia: EBP. Nov. 2000.  

Zanola, Pedro Costa. Pepsic, vol. 51. RJ.2019

 

Trabalho apresentado no XXII Encontro Nacional EPFCL Curitiba Nov/2022. 



[1] C. Dunker disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tnTid417ayU relata a destituição subjetiva conforme os trechos extraídos de Lacan como um momento pós-analítico em que parecia que o sujeito estava desapossado de sua vida e que aí estaria seu reconhecimento, destituição e restituição do sujeito.