sábado, 6 de agosto de 2011

“Macabéa: Estrela da Morte”


“Macabéa: Estrela da Morte”

                 ALMEIDA, Hutan do Céu de. [I]
MARIANO, Luciana Regina Prado Garcia. [II]
SILVA, Daniele Baggio. [III]






































“Macabéa: Estrela da Morte”


[...] A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.

A paixão segundo G.H. Clarice Lispector.


A literatura define o estranhamento do mundo como algo que possa ser tangível, ao criar (reinventar) ao intencionar, o autor produz no outro (o leitor) uma mesma percepção das diferenças que os marcam, e assim o texto literário tem a pretensão de preencher o vazio da existência.
Um conceito preciso de literatura seria difícil concebermos, uma vez que arte não se define, pois isso a limitaria a realidade palpável. Os textos literários sejam eles de quaisquer natureza nos apresentam múltiplas realidades e se fazem revividos aos olhos de cada leitor.
Segundo Passoni (2001 apud FUVEST, 2001) Clarice Lispector foi um símbolo para a literatura do século XX. Sua obra é considerada sui generis pela forma concisa, introspectiva e personalíssima com que conduz suas narrativas. Clarice vai além das indagações individualistas que marcaram sua época porque parte em busca de respostas, respostas essas que nem sempre são encontradas na realidade imediata, daí escapar para o ontológico por meio de uma engendrada investigação metafísica, geralmente subtraída de elementos sublimes.
Através dos seus personagens a autora propõe indagações sobre sua visão de mundo, sempre em busca do mistério, da essência, por meio de questionamentos sobre o sujeito e sobre a morte: “De súbito, num átimo, seus personagens deparam-se com uma relação fulminante capaz de arrancá-los da inércia, do contato frio com o miserável cotidiano. Uma relação que, se pode lançá-los as estrelas, também pode confiná-los a morte...” (Passoni, 2001 apud FUVEST, 2001).
Em sua última obra, publicada em 1977, pouco antes de sua morte, A hora da estrela a autora nos apresenta Macabéa, uma mulher miserável que mal tem consciência de existir. Depois de perder seu único elo com o mundo, uma velha tia, ela viaja para o Rio de Janeiro, onde aluga um quarto com quem divide com mais quatro moças. Emprega-se como datilógrafa e gasta suas horas ouvindo a Rádio Relógio. Apaixona-se por Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino, que logo a trai com uma colega de trabalho. Desesperada, Macabéa consulta uma cartomante (indicada pela colega que lhe roubou o namorado), que prevê para a personagem um futuro luminoso.
Entre a realidade e o delírio, buscando o social enquanto sua alma a engolfava, Clarice escreveu um livro singular. A hora da estrela é um romance sobre o desamparo a que, apesar do consolo da linguagem, todos estamos entregues. (Castello, 1998 apud Lispector, 1998).
Para a literatura a intenção do autor é criar no leitor uma relação de reciprocidade entre os personagens e os possíveis conflitos interiores de cada um que o lê. A força da palavra imprime no ser humano valores não deles, mas sim ditos dele e sem perceber, segue-se por um caminho pré-definido. Pode-se dizer que isso se equipara ao que na Psicanálise é definido como: “[...] todo desejo é desejo do Outro”. (Quinet, 2000).
Em A hora da estrela, Clarice Lispector apresenta uma estória aparentemente simples, uma estória como tantas outras que já conhecemos, entretanto ao analisarmos a personagem principal dessa obra percebemos características importantes sobre o processo de formação de identidade da mesma. A palavra a guia durante toda a sua trajetória de vida e assim define sua sina:
[...] Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua, pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. (Lispector, 1999).
A crueza da obra torna explícita a capacidade humana de construir e destruir seus valores, criar e moldar seus comuns como forma de perceber na diferença do Outro o que realmente seriam. Através da linguagem Clarice pariu Macabéa. Com alguns fragmentos deste texto podemos perceber a profundidade dessa personagem que trazia em si o cunho do não ser:
[...] E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser. (Lispector, 1998).
Elia (2004) em O conceito de sujeito diz que para a Psicanálise a constituição do sujeito se dá a partir e através de uma ordem social, das instituições sociais, ou de seus substitutos jurídicos. Sem essa ordem seria impossível advir o sujeito, este não seria nem de ordem humana, nem mesmo vivo (biologicamente), pois sem a ordem familiar ou social o ser da espécie humana morreria. Freud denominou esse estado de desamparo fundamental do ser humano, porque exige que haja intervenção de um adulto próximo que possibilite a sobrevivência deste ser. Para Lacan esse adulto é um Outro, ou seja, aquele que representa para o sujeito a ordem simbólica.
Através da família a ordem pode ser instaurada e a criança será capaz de construir sua história. É necessário considerar que antes que o bebê nasça ele já é dito – ou não, – ou seja, “a linguagem pré-existe o sujeito” (Elia, 2004). Existe um conjunto de demandas e de desejos que são dirigidos àquele que vai nascer e, inclusive, determinam o fato de seu nascimento. Todavia, esses elementos prévios só têm sentido quando de fato o bebê está inserido neles.
Macabéa foi concebida para não “vingar”. Quando estava grávida sua mãe fez uma promessa para Nossa Senhora da Boa Morte “[...] se eu vingasse, até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome, eu prefiria continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem, mas parece que deu certo”. (Lispector, 1998). Seus pais morreram cedo e Macabéa foi criada por uma tia a quem servia apenas como “criada”. Logo esqueceu o nome de seus pais, pois estes não eram falados pela tia. A personagem não tinha história e não se permitia um futuro.
[...] Quero antes afiançar que esta moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão. É que “quem sou eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto. (Lispector, 1998).
Ao consultar a cartomante, Macabéa, foi presenteada com a possibilidade de um futuro, conheceria um estrangeiro “[...] alourado de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos (...) é ele quem vai casar-se com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos.” (Lispector, 1998). Madame Carlota – a cartomante – nunca havia visto um futuro tão bom: “[...] por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada, ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?”. (Lispector, 1998).
Macabéa na impossibilidade de ter um futuro se identifica com a cliente de Madame Carlota que não teria futuro algum, ao sair da cartomante e atravessar a Rua é atropelada por um Mercedes. Seu desejo era parecer-se com Marylin Monroe. Parecer com Marylin é concretizar a sensualidade em vida, porém apenas na morte isso acontece: se iria morrer, passava de virgem a mulher. A morte é a entrega total que o narrador, amante da morte, chama de agonia do prazer, ápice da dor e do prazer, tendo na pré-morte sua intensa ânsia sensual: “Então – ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte.” (Lispector, 1998).
No Seminário 10: a angústia (Lacan, 2005) diz que só o ato tira da angústia sua certeza. O ato aí é o verdadeiro ato, aquele que tem o poder de transformar, que tem um antes e um depois, aquele que marca o “nada será como antes”. É deste ato que o neurótico foge. O neurótico hesita e se trava diante desse ato. Ele foge desse ato de duas maneiras complementares. A primeira maneira é a protelação, a hesitação. O ato é deixado para um amanhã que nunca vem. Evidentemente, nestes casos a angústia é avassaladora, porque quanto mais se protela mais se angustia. A segunda maneira é a precipitação. O sujeito faz qualquer coisa de qualquer jeito, e o que seria um ato vira uma “asneira”: “Há um aborto do ato. Lacan vai chegar ao cúmulo de dizer que todo ato é falho, e que o único ato bem sucedido é o ato do suicídio.” (Ribeiro, 2006).
Clarice ao intencionar uma personagem marginalizada pelo sistema capitalista, trata de uma questão: a aceitação como sujeito em uma sociedade de tipos pré-definidos – pré-ditos. Assim, aproxima Macabéa do leitor e mostra que há uma relação entre a impossibilidade de “Ser” sem ser dito anteriormente em qualquer contexto. Sem encantos, Macabéa é só Macabéa e talvez nem isso, se veste para a função de ser o que os outros desejam e, se despe da vida ao perceber que tem um futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIA, L. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
FUVEST 2002: literatura, estudo das obras, resumo, análise de textos, exercícios. Org.: Célia A. N. Passoni.
LACAN, J. O seminário livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. São Paulo: Ed. Rocco, 1999.
QUINET, A. A Descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
RIBEIRO, M.A.C. Seminário de Psicanálise: “Angústia e vida pulsional”. Campo Grande, 2006.


[I] Graduado como Tradutor e Interprete pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS -Dourados – MS. Mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Florianópolis – SC. E-mail: hutandion@gmail.com
[II] Graduada em Administração de Empresas e em Psicologia, pós - graduada em Metodologia do Ensino Superior. E-mail: luciana@skoldourados.com.br

[III] Psicóloga, Psicopedagoga, Membro do MS Campo Lacaniano, da IF (Internacional dos Fóruns), da AFCL e do Grupo de Estudos Psicanalíticos- Esfinge. E-mail: danielebaggio@yahoo.com.br

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