sábado, 6 de agosto de 2011

O Saber para a Psicanálise




 Na antiga sociedade grega, consentia - se o saber ao poder, isto é, quem deveria governar seriam aqueles que sabiam contar, pois assim podiam saber repartir, retribuir e assim supõe-se que eram justos.  Na maioria das vezes entregavam-se todas as riquezas para esses que supunham o saber, confiando neles cegamente e correndo o risco de serem enganados. Na república, Platão enfatiza que aqueles que deveriam governar a polis eram os filósofos.
Segundo Nominé (2002, p.58) no mundo civilizado a democracia defende que o saber deve ser compartilhado com todos. Por outro lado, a tirania, a ditadura sempre começam com um confisco do saber.    A equivalência entre saber e poder está fundada no cálculo, na conta, no ciframento, acreditando em tudo aquilo que pode ser cifrado, convertido em saber. O fato é que, hoje em dia, sabe-se que nem tudo pode ser convertido em termos de saber, pois se tornou claro que o saber absoluto é somente idealismo. Para o autor, foi o idealismo de Hegel, filósofo alemão do século XIX que desenvolveu a dialética do senhor e do escravo, na qual se fundamenta a História, já que qualquer História se funda nesse tipo de dialética. Para Hegel, a história acaba com o advento de um saber absoluto, pois o senhor não tem o saber, só o escravo pode produzir a verdade sobre o senhor, porém o escravo que sonha em ser o senhor jamais será senhor do saber. Dessa forma, os dois, senhor e escravo, ficam esperando esse saber absoluto que se daria pelo fim da dialética, isto é, o fim da História. Seria o advento de um saber absoluto, prescindindo do reconhecimento do Outro por ter alcançado o saber universal.
Nominé, em seu texto “A criança e o Saber” (2002) afirma que se o senhor de hoje existe, não seria aquele que domina os demais, é antes aquele que não se recua diante da morte.  A hiância[1] entre saber e poder seria agora uma realidade cotidiana ou, como ensina Lacan, seria o “sintoma” que é testemunha de uma ruptura evidente, de uma discordância, de uma disjunção entre saber e poder.
Além disso, Nominé (2002, p.59) relata  que antes da instauração do ensino obrigatório para todos, o fracasso escolar não existia, pois a criança que fracassa ou está atrasada na escola, não se interessando pelo saber, não cria problemas para si pois essa criança é um grande problema para os professores e os pedagogos, já que sobretudo esse é um sintoma do professor, que se dedica a entregar o saber a todos, para que todos tenham as mesmas chances na sociedade, e nisso fracassa. Assim, professores interrogam psicólogos e analistas, supondo que eles tenham as respostas. Esse fracasso escolar é algo estrutural que realça os limites do saber absoluto.
Assim Nominé relata que:
Esse sintoma é o rastro de uma particularidade, é o rastro de que existe um sujeito que escapa da norma imposta, um sujeito que não aceita andar na linha (NOMINÉ, 2002, p.59).

O que nos leva a considerar o inconsciente desse sujeito. Toda criança pode conscientemente fazer todo o possível para responder à demanda do professor, mas o sintoma testemunha a existência de um sujeito inconsciente que se nega a ser como crianças ideais. Mas é claro que a escola vem só delatar essas conseqüências, pois muito antes de se assimilar o saber é que tais problemas ocorrem.
É a partir da família que a ordem pode ser instaurada entre pai, mãe e criança, pois a partir dessa ordenação é que a criança pode construir uma história, interessar-se pelo saber. Nominé (2002, p.60) nos relata que quando se examina sujeitos que têm alguma questão com o saber, com o fracasso escolar, ou com outro tipo de sintoma relacionado ao saber, quase sempre se descobre que algo não funciona bem na família. Lembrando que algo não funciona bem completamente entre pai e mãe em razão de relação sexual ser problemática para seres falantes, pois, para nós, homem e mulher são significantes, o que não remete a nada absoluto, assim, a falta no saber é flagrante.
Apesar de todos os discursos, anatômicos, biológicos, bioquímicos, hormonais sexuais o encontro sexual está governado pelo mal-entendido e pela contingência. A criança nasce desse mal-entendido e quando mostram sintomas são remetidos a este mal-entendido. O sintoma, por sua vez revela que há um sujeito que não adere por completo ao projeto concebido pelos pais. Isso não quer dizer que a criança não queira saber de nada, mas sim que, ao contrário, sabe demais, por ter encontrado muito cedo algo do gozo do Outro, e a única saída para isso é um encontro com uma pessoa que permaneça a distância dessa ordem e isso surge por uma condição da transferência, já que o saber suposto, saber inconsciente não surge quando se espera ou a pedido do analista, mas na surpresa. “Na transferência, o sujeito dá algo que não tem a alguém que não lhe pediu” (NOMINÉ, 2002, p.65).   
Para a Psicanálise, a palavra inteligência não é usual, a esta é atribuída a palavra saber. A criança, segundo Cordié (1996, 108-164 passim), tem uma liberdade de significantes já que experimenta com prazer o aprendizado da língua, ela desvia o sentido das palavras, o que faz rir comumente. Esse aprendizado da língua se faz, portanto, a partir de uma seqüência de tentativas e erros e, diferentemente da máquina, esses erros não podem ser apagados, as associações incongruentes que surgiram no decorrer do tempo elas se mantêm na memória inconsciente e podem ressurgir quando há oportunidade para isso, um exemplo disso é o caso da análise quando se utiliza o recurso da associação livre.
Essa liberdade do significante implica que ele possa assumir outros sentidos, isto é, libertar-se de uma significação dada para juntar-se a outras cadeias do discurso.  A infiltração do registro inconsciente na natureza do discurso está como nos diz Lacan[2] (citado por CORDIÉ, 1996) para além das palavras. Está para além de ler entrelinhas ou ouvir. E esse além das palavras é metáfora, uma palavra é colocada no lugar de outra e dá acesso a vários sentidos.  
Segundo Mrech (Internet, 1999), a criança não repete situações passadas apenas porque elas têm determinados sentidos e significações, repete-as por que passam a se constituir em formas de gozar. E não há outro aparelho de gozo senão a linguagem.
A criança não repete situações desagradáveis apenas para chamar atenção do professor ou dos pais, mas por que aquilo tem um determinado sentido, porque se encontra presa em cadeias de gozo das quais não consegue sair.
Durante muito tempo os psicanalistas acreditaram que bastava o sujeito saber o sentido e os significados das suas ações para mudar. Sabe-se que hoje o problema é muito maior, porque o sujeito está preso a cadeias de gozo, a formas de gozar padronizadas de que não se consegue desvencilhar, nem mesmo saber. Para a referente autora, a linguagem e a fala não dão conta de dizer os sujeitos, as crianças, as vidas e histórias, tendo em vista que o saber tem limites, não é um saber integral, idéia que ela extrai a partir de Lacan, pois o saber não é absoluto como afirmai acima.
Lacan[3] (citado por Mrech, 1999) ensina que o saber é não todo, que nele sempre falta algo, incompleto, e esse saber não pode ser reduzido a um saber universal, completo, total, já que cada um terá que tecer o saber a partir da linguagem e da fala, um saber que tecerá a verdade do sujeito. O saber universal não traz em seu bojo a verdade do sujeito, isto é, demonstrando por que o sujeito agiu de determinada maneira, porque ele se encontra preso às cadeias de gozo, assim como a palavra, as significações e sentidos das ações das crianças elaboradas pelos adultos não dão conta de dizer o que elas pensam, sentem e por isso repetem determinadas ações.
Em sua obra Televisão (1993, p.63) Lacan ensina que, para Kant, o interesse de nossa razão está resumido em três perguntas: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar?  A essas questões cabe-nos esclarecer somente sobre o que posso saber, pois segundo Lacan, o próprio discurso não admite a pergunta, já que se supõe um sujeito inconsciente.
Além disso, Lacan responde a essa pergunta dizendo que o que se pode saber é nada que não tenha em todo caso a estrutura da linguagem, mas atesta para a irrupção de um Real, em que a língua não constitui e cifra, isto é, não se pode saber totalmente, pois há uma parte de um todo que se encontra no Real, impossível de ser simbolizada.
Então, pode se dizer que o saber ex-siste para nós no inconsciente, mas que só é articulado a partir dos discursos, haja vista que o sujeito do inconsciente só se situa verdadeiramente a partir do discurso.  “Digo a verdade: não toda, por que dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do Real” (LACAN, 1993, p.11).
Podemos tentar compreender isso também a partir do que Lacan ensina sobre a mulher, dizendo que a Mulher não ex-siste, para a mulher não existe uma significação fálica no encontro com o sexual ainda quando somos crianças, não há um significante como o do homem (pênis), que possa dar sentido a mulher. Falando em nível inconsciente, para ele não há homem e mulher, há os que têm o significante (pênis) e os que não têm, nesse caso a mulher, por isso não ex-siste. Portanto, também não há relação sexual, pois não se faz uma relação só com o Um, daí se dizer que a relação sexual é fracassada.
Dessa forma, os discursos científicos falham por não aceitar esse Real do mundo, o que faz seres alienados por que tentam comprovar cientificamente a existência a descoberta de um todo, esquecendo que até mesmo as palavras, os discursos e o sujeitos estão parcialmente fora desse todo que pode ser simbolizado.
Desse modo o saber para a Psicanálise é algo que existe no inconsciente, que é articulado a partir da fala que, por sua vez, provém da verdade que é não-toda.



[1] Hiância : lacuna, fresta.
[2] LACAN apud CORDIÈ,1996.
[3] LACAN apud MRECH,1999.

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